Religião
Qual o papel do sofrimento? – Por Daniel Lima
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Nesta última semana estive lendo o livro de Jó. Todos conhecemos a história. Jó era um homem bom e fiel, mas Deus permite que Satanás faça todo tipo de maldade contra ele. Após tragédias gigantescas em sua vida, três amigos chegam para trazer consolo. Nessa leitura, um dos conselhos dados pelos amigos de Jó saltou aos meus olhos e me fez parar para refletir sobre o tema do propósito do sofrimento. Trata-se da palavra de Bildade registrada em Jó 8.5-6:
5Mas, se você procurar a Deus e implorar junto ao Todo-poderoso, 6se você for íntegro e puro, ele se levantará agora mesmo em seu favor e o restabelecerá no lugar que por justiça cabe a você.
A primeira parte da sentença faz todo sentido, pois estimula Jó a procurar a Deus e implorar. No entanto, a segunda parte revela uma distorção tão comum e frequente. Apesar de bem-intencionadas, as palavras do amigo de Jó mostram sua percepção de uma relação meritória com Deus. Começa com a condição de sermos íntegros e puros e se torna ainda mais evidente com a expressão “restabelecerá no lugar que por justiça cabe a você”, acrescentando ainda que Deus fará isso “agora mesmo”.
Vamos ver estes desvios com cuidado. Primeiramente, a palavra de Bildade indica uma percepção de que integridade e pureza tornam a pessoa merecedora de algo em troca. Nesta perspectiva, diante da integridade e da pureza, Deus se vê obrigado a vir em favor da pessoa. Esta é a razão da bondade de Deus (o que automaticamente deixa de ser bondade e passa a ser “pagar o que é devido”). Pensando assim, Deus é obrigado a, diante de minha justiça, me abençoar. O apóstolo Paulo trata deste tema em sua autoavaliação, em Filipenses 3.2-11. Ele afirma no verso 4 que, “se alguém pensa que tem razões para confiar na carne, eu ainda mais”. Porém, Paulo rapidamente afirma que o que para ele era lucro ou razão de mérito tornou-se como lixo; ou seja, suas realizações de “justiça” não lhe atribuíam nenhum mérito.
Se você já fez uma avaliação profunda e sincera de seu coração, você também treme ao pensar em Deus fazendo justiça com base na sua integridade ou pureza.
Em segundo lugar, Bildade desenvolve a ideia de que Deus colocará alguém no lugar que “por justiça” lhe é devido. Mais uma vez vemos uma imagem de um Deus subserviente ou obrigado a restaurar a alguém por causa de sua justiça pessoal. Com frequência vemos isso tanto em cânticos como em pregações. Esta é uma relação mercantilista, onde Deus é obrigado a cumprir seu lado do negócio. É algo como: “Eu fiz minha parte sendo justo, agora Deus tem que fazer a parte dele me restabelecendo à posição que é minha por justiça”. Percebe a arrogância deste pensamento? Paulo compreende que não pode – nem deve – se apoiar em sua própria justiça. Nos versos 8 e 9 ele afirma:
8… para poder ganhar Cristo 9e ser encontrado nele, não tendo a minha própria justiça que procede da Lei, mas a que vem mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus e se baseia na fé.
Repare que Paulo não confia em sua própria justiça. Se você, como eu, já fez uma avaliação profunda e sincera de seu coração, você também treme ao pensar em Deus fazendo justiça com base na sua integridade ou pureza. O que queremos é misericórdia. O que pode nos salvar é justamente a justiça de Cristo, mediante a fé.
Você, eu e a maioria dos seres humanos, diante de um problema, com frequência reage perguntando “onde foi que errei”? Isso faz um certo sentido, pois geralmente nos envolvemos em problemas que nós mesmos criamos, mas a Bíblia aponta inúmeras vezes em que homens e mulheres de Deus se deparam com problemas e sofrimentos que não têm nenhuma relação direta com erros e deslizes seus. Se não é por decisões tolas de nossa parte, e se cremos que nosso Deus é soberano sobre todos os detalhes, por que, então, sofremos?
Nos próximos artigos eu gostaria de examinar situações em que a Bíblia registra homens e mulheres que sofreram (em alguns casos até a morte), sem que isso fosse consequência de erros seus. Ou seja, Deus permitiu que sofressem por motivos superiores. Minha esperança é que, ao olhar estes santos de Deus enfrentando desafios, possamos compreender melhor os propósitos de Deus e sermos estimulados a manter nossos olhos fixos no autor e consumador de nossa fé.